segunda-feira, 10 de maio de 2010

::: A Universidade é uma instituição feudal :::


Terminei a leitura de Os Intelectuais na Idade Média, de Jacques Le Goff.[1] Compreender as origens é fundamental para a compreensão do presente. Conhecer o intelectual e a universidade medieval nos ajuda a entender o intelectual e a universidade atuais. Percebemos, então, como a tradição resiste ao tempo, como os mortos assombram os nossos cérebros e revivificam pelos nossos hábitos. Consideramos-nos modernos – alguns até falam em pós-moderno – mas, de fato, muito do habitus do intelectual acadêmico de hoje tem a ver com os nossos ancestrais. Os tempos são outros e ocorreram transformações. Não obstante, é aconselhável levar em consideração a tradição, a continuidade na descontinuidade, as permanências nas rupturas históricas.

A leitura de Os intelectuais na Idade Média foi motivada pela curiosidade intelectual, pelo desejo de conhecer melhor a história da instituição à qual me encontro estritamente vinculado.[2] Mas também é parte do esforço de compreensão das práticas no campo[3] acadêmico. Está ligado ao projeto de pesquisa Sociologia da prática científica, desenvolvido com o Prof. Dr. Walter Praxedes e vinculado ao Grupo de Pesquisa em Sociologia do Conhecimento e Educação.

A universidade, em suas origens, é feudal, mas é urbana – e esta é uma das suas características determinantes: “No início foram as cidades. O intelectual da Idade Média – no Ocidente – nasceu com elas. Foi com o desenvolvimento urbano ligado às funções comercial e industrial – digamos modestamente artesanal – que ele apareceu, como um desses homens de ofício que se instalavam nas cidades nas quais se impôs a divisão do trabalho”, afirma Le Goff.[4] O intelectual típico da Idade Média é aquele “cujo ofício é pensar e ensinar seu pensamento”. Como ressalta Le Goff, é a “aliança da reflexão pessoal e de sua difusão num ensino” que caracteriza o intelectual medieval.[5]

Eruditos, clérigos*, pensadores, etc. Várias são as palavras para designar o intelectual da Alta Idade Média que desenvolve-se nas escolas urbanas do século XII e manifesta-se nas universidades do século XIII. Ele é o elemento central desta corporação específica, a universidade:

“O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações. Em cada cidade em que existe um ofício agrupando um número importante de membros, esses membros se organizam para a defesa de seus interesses, a instauração de um monopólio de que se beneficiem. É a fase institucional do impulso urbano que materializa em comunas as liberdades políticas conquistadas, em corporações as posições adquiridas no domínio econômico. Liberdade aqui é equívoco: independência ou privilégio? Encontrar-se-á essa ambigüidade na corporação universitária. A organização corporativa já petrifica o que consolida”.[6]

Combatida pelas autoridades eclesiásticas e pelo poder civil, a universidade corporativa encontra apoio no papado. Paradoxalmente, coloca-se sob as asas protetoras do poder espiritual, a despeito da sua tendência ao laicismo. São as contradições inerentes a uma instituição que precisa barganhar para sobreviver, manter e ampliar privilégios. Ao se aliar ao sumo pontífice, o intelectual termina por se submeter. A Santa Sé tem interesses e o favorece para domesticá-lo. A corporação universitária conquistou a independência em relação às forças locais, sob o preço de torna-se uma corporação eclesiástica.[7]
Eis uma ambigüidade que persistirá. A universidade se pretende autônoma, mas depende dos recursos do Estado. Como sua antecessora medieval, ela tem privilégios a defender. E, claro, os que dependem dela. Seu caráter corporativo se mantém atual.

[1] LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
[2] Refiro-me à universidade em geral, e não apenas à universidade específica na qual trabalho.
[3] Utilizo “campo” enquanto conceito criado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, uma das referências bibliográficas principais da pesquisa que desenvolvemos.
[4] LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p.29.
[5] Idem, p.23.
* Como observa o tradutor, Marcos de Castro, em nota de rodapé: “A palavra do original, clerc, te em francês, além do sentido de membro do clero, o de sábio, erudito, intelectual, o que não acontece com “clérigo” em português” (LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 23).
[6] Idem, p.93.
[7] “Ainda que seus integrantes estejam longe de pertencer às ordens; ainda que, cada vez mais, ela vá abrigar em suas fileiras puros leigos, os universitários passam todos por clérigos, estão ligados às jurisdições eclesiásticas, mais ainda: à jurisdição de Roma. Nascidos de um movimento que caminhava para o laicismo, integram-se à Igreja, mesmo quando buscam, institucionalmente, dela sair” (In idem, p. 100).
 
by Antonio Ozaí da Silva
(Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); editor da Revista Espaço Acadêmico, Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e Revista Urutágua)

Um comentário:

  1. Olá!
    Não tenho a oportunidade de visitar sempre o blog, mas com toda certeza ele está muito interessante.
    Em especial gostei desse post, não sei porque...
    Sempre que puder passarei por aqui.
    Abraços
    Cecília Santos
    Ciências Sociais

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